Zunidos, sandices, amores e refregas de um pernilongo filósofo.

Wednesday, February 27, 2008

Crônica de uma chinelada anunciada.

Ah... bons interlocutores estão cada vez mais raros. Seres como a Creuza, uma barata voadora culta, inteligente, observadora e generosa estão acabando. Pois lá estávamos a Creuza e eu falando irresponsavelmente sobre assuntos que desconhecíamos. A geografia da lua, as fazendas de pérolas, o preço do camarão, os cangurus pugilistas. E por algum motivo lembramos de meu amigo Ari, o Aristóteles, uma ave vira-bosta de espantosa cultura.

Disse eu à Creuza que de todos os axiomas e pensamentos, de todas as frases e idéias de Ari, minha favorita era aquela do animal político.

“O homem é um animal político”

Ela concordou e acrescentou:

- E todo político é um animal em forma de homem. Animal de tetas, rabo e bigode.

Irascível, a barata se pôs a falar e trepidar as asas.

- É isso mesmo! Só uma intenção predadora explica os bilhões de reais gastos pelos deputados e senadores com os salários de seus funcionários! E os atos secretos! E a cara de pau!

Para uma barata, ela estava cheia de informações.

- A Câmara dos Deputados tem cerca de 14,7 mil funcionários. São 29 empregados por parlamentar. É mole, pernilongo?

Ela andava em círculos e continuava.

- Quer mais? Olha os sites do governo. Só o Senado Federal tem 6.248 funcionários. São 77 para cada Senador. Um disparate!

A barata insistia.

- E os salários e benefícios dos próprios parlamentares, então? Essa gente ganha dinheiro demais em um país miserável! As conquistas da democracia no passado são usadas hoje contra os cidadãos. Deputado ou senador nenhum está interessado em ajudar o povo que paga impostos! Essa gente quer é aumentar os seus rendimentos! O povo precisa ir às ruas, pegar em armas!

Creuza tomava fôlego para continuar seu discurso inflamado quando um súbito deslocamento de ar e um estouro me lançaram para o alto.

PÁÁÁÁ!

O aguçado reflexo das muriçocas me fez voar para longe do estrondo. Pousei na parede, olhei para baixo e me dei conta do que acabara de acontecer. A pobre barata jazia esmagada no chão, sob uma legítima sandália Havaianas.

E ainda dizem que a censura acabou. Conta pra eles, Estadão!

Barriga cheia. Cabeça murcha.

Visto daqui do alto deste lustre empoeirado, o mundo anda estranho. O ar está infestado de muriçocas que me envergonham de minha própria espécie. Desinformadas e avoadas. Pernilongos que não se interessam por nada além de chupar sangue e dormir nos fios elétricos. Não lêem, não ouvem, não vão ao cinema. Vivem assim, levadas pelo vento. Quando se dão conta, seu único e longo dia de vida passou inteiro num sopro.

Diga para mim: pode haver criatura mais chata no mundo que um mosquito sem assunto? É o fim. Aquele zunzunzum sem conteúdo me mata. As muriçocas não lêem mais. Nem um breve flutuar de olhos pelos livros que os humanos fingem ler antes de dormir. A pernilongada quer mesmo é ir direto à comida. Mal a pessoa fecha os olhos, lá vamos nós, canudo em riste, rumo às veias dos homens. Eu, não. Que sou vegetariano praticante e leitor sugador. Mas os da minha casta, via de regra, estão assim, voando em círculos. Barriga cheia. Cabeça murcha.

Cada dia mais parecidos com uns espécimes de cabeça, tronco e membros que eu conheço.